Turmas da Corte proferiram duas recentes decisões contrárias à cobrança pela União.
Duas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) impedem a União de exigir o Imposto de Renda (IR) sobre ganho de capital decorrente da valorização de bens transmitidos por herança ou doação. A discussão levada aos ministros é se acaba ocorrendo uma dupla tributação porque os Estados já têm o poder de cobrar o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) sobre bens doados ou herdados.
Essas decisões são das turmas do Supremo, que são compostas por cinco ministros cada uma. Ambas mantêm decisões de tribunais regionais federais, embora os fundamentos para beneficiar o contribuinte sejam diferentes. Ainda assim, segundo advogados tributaristas, são importantes sinalizações da mais alta Corte do país sobre o tema.
Na prática, explica o especialista Daniel Franco Clarke, admitir ou não a taxação pelo IR impacta, no fim das contas, “na atribuição dos montantes a serem distribuidos aos herdeiros no inventário”.
O ITCMD recai na transferência da propriedade de bens em razão do falecimento ou de doação. Quem recolhe é o herdeiro ou o donatário, aquele que recebe a doação. As alíquotas variam de Estado para Estado, mas podem chegar a 8%.
A União tem exigido o IR – com alíquota entre 15% e 22% – sobre eventual ganho auferido na atualização do valor do bem no momento da transferência da propriedade. Mas, diferente do que ocorre com o ITCMD, o IR é cobrado do doador ou do espólio, explicam advogados.
“Não há propriamente para o doador acréscimo patrimonial quando faz a transmissão. Pelo contrário. Bens foram retirados do seu patrimônio”, afirma Clarke. “Pode haver ofensa à capacidade contributiva com a exigência do imposto”, acrescenta a advogada Nina Pencak, do mesmo escritório.
Os advogados explicam que a lei dá a opção para o contribuinte declarar os bens pelo valor de mercado ou pelo valor original, previsto na declaração de bens do falecido ou do doador. Essa faculdade consta no artigo 32 da Lei nº 9.532, de 1997.
Se a transferência for efetuada pelo valor de mercado, a diferença positiva será tributada pelo IR. Um imóvel que tinha o valor histórico de R$ 100 mil e hoje vale R$ 500 mil pode ser transmitido, para fins do IR por R$ 100 mil. Mas se o for pelo valor maior, os R$ 400 mil de “saldo” serão tributados.
Essa opção não existe para o ITCMD, que recai – sem opção do contribuinte – sobre o valor venal dos bens ou direitos transmitidos.
Segundo o mapeamento da banca Mannrich e Vasconcelos Advogados, existem decisões a favor dos contribuintes nos Tribunais Regionais Federais da 1ª (TRF-1), da 2ª (TRF-2) e da 4ª Regiões (TRF-4). Ainda não haveria, de acordo com a banca, precedentes no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
No Supremo, a disputa ainda está em aberto. A Fazenda Nacional contabiliza dois precedentes favoráveis à tributação. Uma decisão individual (monocrática) da ministra Cármen Lúcia (RE 1392666) e uma decisão da 2ª turma, em que os ministros consideraram legítima a exigência do IR sobre ganhos de capital do doador no adiantamento de herança (RE 1269201).
“Nos dois casos, o STF abonou a tese da União e afirmou que a legislação – Leis nº 7.713/1988 e nº 9.532/1997 – não estabeleceu fato gerador do imposto de renda, mas limitou-se a explicitar o momento de apuração do acréscimo patrimonial ocorrido”, afirmou a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), em nota ao Valor.
A União tem defendido que não haveria uma cobrança dupla. Isso porque, diz, não há tributação da herança ou da doação, mas do ganho de capital decorrente da valorização que já havia ocorrido anteriormente, e que somente foi aferida no momento da transferência. “Por essa razão, não cabe falar-se em bitributação, considerado o fato gerador do ITCMD”, diz.
Em decisão recente, no entanto, a 1ª Turma do STF brecou a exigência do IR por entender estar configurada a bitributação. Manteve, com isso, decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, com sede no Rio de Janeiro, favorável ao contribuinte.
Segundo o relator, ministro Luís Roberto Barroso, o Supremo tem entendimento de que o IR incide sobre acréscimo patrimonial disponível econômica ou juridicamente. E que a Constituição repartiu o poder de tributar entre os entes federados.
“Admitir a incidência do imposto sobre a renda nos moldes defendidos pela Fazenda acabaria por acarretar indevida bitributação, na medida em que também incidiria o imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCMD)”, afirmou o ministro, no voto (ARE 1387761).
A decisão foi por maioria de votos. A ministra Cármen Lúcia divergiu e deu razão à União. Segundo ela, as normas que preveem a tributação não inovam sobre o fato gerador do Imposto de Renda nem na determinação de incidência desse tributo sobre a doação ou sobre a herança.
“Trata-se apenas da definição do momento para a apuração do ganho de capital tributável”, diz, acrescentando que também não haveria bitributação porque o Imposto de Renda recai sobre o ganho de capital apurado na doação em antecipação da legítima, e não sobre a doação em si.
Na outra decisão, do início de março, a 2ª Turma do STF não entrou no mérito da discussão. Entendeu, por unanimidade, que não haveria, no caso, discussão constitucional para a Corte analisar.
“Eventual discussão acerca da ocorrência de bitributação – nas hipóteses de incidência do IR sobre imóveis recebidos em herança – exigiria a reinterpretação de norma infraconstitucional (Lei 9.532/1997), o que é vedado em sede de recurso extraordinário, além de revelar afronta meramente reflexa ou indireta ao texto constitucional”, afirmou o relator, ministro Nunes Marques (RE 943075).
Com isso, na prática, os ministros mantiveram decisão do TRF-1 que, além de reconhecer a bitributação, entendeu não ter ocorrido ganho de capital na transferência do bem herdado.
Para o tributarista Leonardo Moraes e Castro, é questionável a posição do Supremo de que a discussão seria infraconstitucional e, dessa forma, teria que ser resolvida em última instância pelo STJ.
“É uma questão de repartição de competências. A doação e a transmissão de herança são tributadas pelos Estados, mas o são exclusivamente? Há uma lacuna”, diz.
Por Bárbara Pombo
Fonte: Valor Econômico
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